O humor é uma espécie de tom. Enquanto participante da geração do riso, oscila muito de lugar para lugar, de época para época. As obras são mutantes, mutáveis e maleáveis e tão diversas como a própria sociedade. As tiras que eu faço são, ao mesmo tempo, trabalho resultante de toda uma vida de me dedicar a construir ficção e são também propostas novas. A minha ideia é de propor coisas novas e me propor coisas novas também. Nada é realmente novo, mas eu quero propor coisas que também possam ser surpreendentes para mim… Não estou propondo algo com código a ser desvendado, estou produzindo um texto poético, uma tira poética, uma mensagem, uma construção que usa o humor, mas que não é uma piada.

Em princípio tudo é ficcional, mesmo quando me baseio em fatos que aconteceram eu dou um tratamento que é uma criação minha. A charge tem como objetivo ou privilégio essa função de trabalhar com o ridículo, com o absurdo, de fazer ilações que são absolutamente impossíveis. Até hoje a gente está criando formas que são novas de dizer, e eu acho que nesse momento de pandemia e nesse momento de internet, criaram-se formas novas e muito ricas de abordar a nossa sociedade.

Cômico é uma coisa que vai te chamar para o riso. Se você não der risada, é um cômico que se frustrou. O gerador da mensagem cômica precisa trabalhar com o repertório conceitual, de valores e de ideias que sejam muito parecidas com o seu público. Quem lida com o cômico que precisa obter a risada, precisa também driblar a dramaticidade que vai acabar com a piada, vai matar a risada. Daí que a gente está vivendo um momento muito especial, porque estão se revelando situações sociais que antes não se explicitavam, que é a dor de você ser negro no Brasil, ser gay, ser gorda, essas situações todas se tornaram muito claras e colocaram em xeque as linguagens de humor que se produzia. É isso o que está acontecendo, essa é uma das crises mais evidentes do humor no Brasil hoje.

Esse movimento que eu fiz de deixar de lado os personagens e o roteiro de construção de piada foi uma coisa muito pessoal que de maneira nenhuma pretende colocar o meu trabalho numa posição de superioridade ou de inferioridade em relação a outros trabalhos, são propostas diferentes. Eu gosto muitíssimo de alguns personagens e não é desprezível o leitor que quer encontrar um caminho, não é menor. Na minha vida pessoal, eu sei que o mundo é complicado, que a vida é complicada e que as propostas e os desafios não são nem um pouco simples, mas existe algum ponto de direção, eu tenho uma noção de onde eu quero ir. Quando me falam de transição por exemplo, de conduta de gênero, busca de identidade de gênero, eu não gosto porque a transição supõe um lugar de onde se saiu e um lugar a se chegar. Eu estou fazendo uma caminhada, mas ao mesmo tempo essa caminhada também não é uma coisa sem norte, absolutamente aleatória… a pessoa que está questionando a sua posição no espectro de gênero e pretende fazer um movimento dentro desse espectro, ela se orienta por modelos. Toda linguagem de gênero é uma representação cultural, uma representação de modelo, não é um dado da natureza. O que é masculino e o que é feminino... quando a gente quer mudar isso, são as histórias que a gente vai inventando na construção de novas possibilidades.

O capitalismo propõe uma coisa que, em tese, não tem saída. Ele propõe, por exemplo, a ideia do lucro permanente que supõe um mundo inesgotável. É uma das contradições que mais me fazem pensar, como é possível obter o lucro permanente num mundo que é fisicamente esgotável, limitado? Você não pode inventar recursos que não existem. O que nos impede de construir uma coisa distributiva, racional, humana, possível, fraternal e solidária? O que nos impede de fazer isso é a ideia de que isso é um absurdo, porque isso contraria a verdadeira natureza do ser humano, essa é a proposta do capitalismo. Então o capitalismo está construindo esse mundo sem sentido, sem saída. Esse é o labirinto capitalista. Mas o mundo é também um labirinto, não é nada simples… 

Eu acho essa coisa de país, uma ficção tão estranha, claro que eu entendo que o Brasil é específico… mas o que nos separa dos paraguaios, uruguaios, argentinos, venezuelanos, o que nos separa dos cubanos? O que nos torna tão diferentes do povo de Angola, Moçambique, Mauritânia? Claro, são lugares e povos que têm histórias diferentes e problemas diferentes, mas muitas vezes são os mesmos problemas… Uma frase do Mujica falava: como você olha o seu país, seu povo, aí você vê um sujeito morrendo de fome ou dormindo na rua ou um sujeito completamente sem esperança, como é que você vai ficar em paz com isso? Como você passa por isso e fala: a vida é assim! Não é possível. Eu entendi que esse é um modo de entender as coisas, é um início de um modo. A partir dessa posição você passa a ter uma outra coisa que não é só o incômodo, não é só a necessidade de ter compaixão, é uma certeza de que isso não é o que a gente quer, não pode ser assim, as pessoas não podem comer osso, as pessoas não podem perder seus filhos num tiroteio, as pessoas não podem ter que buscar seus parentes no mangue depois de terem sido assassinados pela polícia. Não pode ser assim! E o que fazer depois disso… tem muita coisa… O meu trabalho não é exatamente um orientador, o meu trabalho é parte dessa bagunça, eu me situo dentro dessa coisa toda… Aliás esse é um dos problemas da charge, porque a charge está num lugar, no jornal onde ela está, em cima de um pedestal com uma luz. Em princípio a charge é como uma coluna… e eu não consigo me ver como alguém que orienta, esclarece coisas.

O quadrinho tem chance de aparecer ainda, e está aparecendo… É um caminho meio inegável, aquilo que é papel hoje vai se tornar digitalizado. Eu acho que os quadrinhos estão buscando se viabilizar nesta direção. Eu não sou uma boa analista desse processo, dificilmente eles já criaram um espaço reconhecidamente vinculado ao meio digital, mas experiências que têm acontecido, tem indicado essa direção. De uma maneira geral, os quadrinhos, as charges e o humor gráfico, ainda estão expressando uma tradição, que é a do material impresso. Não acho que isso seja um destino imutável e não é algo condenatório, expressa uma dificuldade muito grande também, o que fazer com o ambiente digital? Talvez o cartum seja também uma linguagem datada, uma linguagem de uma época. O que a meninada do Capão Redondo, da Vila Brasilândia está fazendo? É cartum? Não, eles estão fazendo tatuagem, estão fazendo grafite no muro, então essa linguagem é diferente, porque está traduzindo uma juventude num contexto social muito diferente e num contexto político também muito diferente. Então no quadrinho, eu não sei, eu acho que é uma linguagem muito poderosa porque ela é muito democrática, ela é muito barata, mas isso quer dizer que nós vamos repercutir as formulações industriais que vieram acontecendo até agora? Não! Eu acho que não, mas eu também não sei dizer exatamente para onde vai. Acho que não está claro ainda.

LAERTE no Lugar, 25 de novembro de 2021.

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