Sumário
Parte I – A superfície do corpo e a constituição do sujeito
Uma superfície para a análise
Maria Cristina Vecino de Vidal
A garatuja e o desenho: uma escrita da falta
Jeanne D’Arc Carvalho
Dimensões do corpo: Winnicott e Lacan
Eduardo Vidal
O corpo no marco teórico de Françoise Dolto
Cláudia Mayrink
A transgeracionalidade do significante
Inês Catão
A identificação em um corpo retalhado
Vera Maria Vinheiro Brandão
Narcisismo e imaginário – considerações
Licia Magno Lopes Pereira
“É que Narciso acha feio o que não é espelho”
Letícia Nobre
O corpo e o gozo
Isabel Goldemberg
Tradução: Paloma Vidal
O corpo para a psicanálise
Arlete Garcia
Pulsão: sujeito como um furo que goza.
Rosa Maria de Britto Silva
As margens da pulsão
Gilsa F. Tarré de Oliveira
Rita Maria Manso de Barros
Considerações sobre o auto-erotismo
Nilza Ericson
Autismo – uma mudez de corpo
Heloisa Godoy
Parte II – Psicanálise e Medicina
Um fetiche para os ignorantes: a psicossomática
Patrick Valas
Tradução: Paloma Vidal
Uma escrita ilegível…
Benita Losada A. Lopes
Rossely S. M. Peres
“A psicanálise na instituição pública: uma prática com pacientes diabéticos”
Letícia Maria Teixeira Rocha
“Luzes sinistras”
Joseléa Galvão Ornellas
Algumas considerações teóricas e clínicas sobre a
debilidade e o corpo
Carla Queiroz
Lucia Lobianco
Tania Mendes
Notas sobre a convulsão em psicanálise
Dalmara Marques Abla
Entrevista
Dra. Maria Regina Augusto de Andrade / Dalmara Abla
Distúrbios psicossomáticos após pneumonia – relato de dois casos
Paulo J. Dickstein
Percepções do bebê pré-termo na UTI neonatal
Ricardo Nunes Moreira da Silva
Parte III – Corpo e Histeria
O sintoma histórico como efeito plástico do ato inconsciente sobre os processos somáticos
Sofia Sarué
Arquitetura corporal na histeria
Isabela B. Bueno de Prado
Paulo Becker
Corpo e gozo – articulações clínicas
Arlete Garcia
Cristiane Laquintinie Amaral
Sobre a conversão histérica
Zulmira Barreto de Moraes
Um corpo que fala
Cora Vieira
O X da questão num caso de anorexia infantil
Flávia Drummond Naves
Maus tratos: entre a culpa e a responsabilidade
Elisa Teixeira
Parte IV – Vinhetas Clínicas
Quando o pé do analista é o pé da letra
Marcia Jezler Francisco
“Boi da cara preta, pega esta criança que tem medo de careta”
Teresa da Costa
A mentira estampada no corpo
Maria Cecilia Garcez
O que a gagueira fala: uma pontuação clínica
Gecilda Orechio de Morais Lopes
“Então, quem é meu pai?” – uma pergunta que causa uma convulsão.
Regina Fátima Guariglia
“Mas eu não gosto de futebol” ou impasses de uma criança na construção de sua sexualidade
Cacilda Maria Vieira Bruni
“E se o barco destrói a ponte?”: corpo, intrusão e espaço
Karla Patrícia Holanda Martins
Adolescência, toxicomania e função paterna
Ligia Bittencourt
Onde está o retardo?
Regina Fleiuss
Da xícara à hora do chá – fragmentos do tratamento analítico de uma criança autista
Suzana Arias
Tradução: Paloma Vidal
“Não consigo… sem borrar”
Ilana Kauffmann Gurgel Valente
Apresentação
A psicanálise, como discurso, introduz uma distinção fundamental entre o conceito de corpo com o qual opera daquele do puro organismo próprio do discurso da ciência. O “corpo do Outro” é habitado pelo significante, “e a criança”, desde os primórdios de sua constituição, experimenta no seu corpo, ainda antes de advir à palavra, a incidência da marca do Outro. É, precisamente, pelo viés da marca que a psicanálise pôde estabelecer a relação entre o narcisismo proposto por Freud e a tópica do imaginário articulada por Lacan a partir da imagem unificante do corpo próprio.
A publicação se inicia com os trabalhos que dizem respeito ao corpo como superfície na qual se escrevem os traços de um desejo que chega do campo do Outro. Esses primeiros traços, libidinalmente investidos pelo Outro primordial – a mãe – selam o corpo do infans.
A presença de um desejo não anônimo é o solo da construção do imaginário onde se recorta uma experiência fundamental, a do espelho. A estrutura do sistema eu-outro se ilustra no modelo ótico onde o infans, na beira de seu acesso à palavra, consegue um esboço de permanência e identidade. Essa imago virtual, estruturante, revela as primeiras organizações de um psiquismo antecipando, de uma forma ilusória, a forma total de seu corpo. É o momento no qual, como diz Lacan, “o corpo próprio é o corpo do outro, a imagem do outro é a própria imagem, fundamento da identificação, pela qual o sujeito da superfície quer se ver como unidade”. Como um outro se reconhece a si mesmo, trata-se de um eu que não é autônomo e se institui como eu-ideal.
A imagem refletida traz o valor relativo à função do desejo do Outro onde o sujeito se mira. É na relação em espelho que o sujeito – fazendo-se seu objeto – pretende apropriar-se do desejo do Outro. Essa é a mola da operação de sua alienação primordial cujo desígnio lhe escapa. Um terceiro termo implícito, o falo, relaciona a dimensão do valor com a falta. O corpo da criança metaforiza o falo enquanto falta no corpo do Outro o que o torna vulnerável ao jogo do engano.
Quando o corpo se entrega ao suborno do fantasma da mãe, o analista escuta precocemente no real os efeitos dessa captura. Escutar o real no corpo que adoece permite estabelecer uma interlocução possível entre a psicanálise e a medicina. No campo da interseção, estão os trabalhos de pediatras que lidam com esse pequeno corpo em crescimento e muitas vezes em sofrimento. Da pediatria à psicanálise têm um lugar destacado as produções de Winnicott. Ele realiza um percurso teórico e clínico marcado pela escuta sensível de uma experiência a partir da qual formula uma área intermediária que impossibilita o colapso do corpo da mãe com o do bebê. Com a noção de psique-soma como uma unidade essencial para o desenvolvimento, Winnicott aborda os transtornos precoces que afetam o corpo da criança.
Na encruzilhada entre psicanálise e medicina, encontra-se o difícil terreno da psicossomática, definida, desde Hipócrates, como parte da medicina a ocupar-se do corpo e do espírito, da relação entre o soma e a psychê. O advento da psicanálise tornou possível a leitura da determinação inconsciente dos sintomas e Georg Groddeck, seu principal inspirador, afirma a importância dos fatores psíquicos nas doenças orgânicas, considerando o valor simbólico dos sintomas.
Freud não se refere especificamente às doenças psicossomáticas; pois, com a noção de inconsciente, não responde pela exclusão do corpo operado pelo cogito cartesiano. O corpo fala no sintoma e mesmo quando emudece sua determinação continua sendo a linguagem.
Lacan refere a posição do psicanalista com respeito à medicina e ao corpo que adoece como de “extraterritorialidade” trazendo à tona uma posição quase marginal, porém necessária, na relação com o médico e o preserva da tentação de ser psicólogo ou assistente terapêutico. Com o significante “falha epistemo-somática”, designa “o efeito que teria o progresso da ciência sobre a relação da medicina com o corpo”. Portanto, os recursos da ciência e da tecnologia são inoperantes para configurar uma dimensão essencial e constitutiva: a da linguagem que o habita, do gozo que recorta e do desejo que o anima.
M.C.V.V.