O que nós perdemos?  O que nos foi negado?

Sou parte de um povo indígena, povo Munduruku, um dos 305 povos originários que existem ainda hoje no Brasil. Na verdade, temos que pensar a diversidade linguística que existe no Brasil – hoje ainda são faladas 274 línguas diferentes. Do ponto de vista antropológico, a língua de um povo é parte significativa da cultura, da sua leitura de mundo. Quando um povo perde a sua língua, ele perde também essa leitura de mundo.

Quando aprendemos a lidar com essa população que foi generalizada pelo uso da palavra índio, escondendo e apagando as suas diferenças, sua diversidade, o seu modo de ser, o seu modo de se entender no mundo, e do seu modo de construir toda uma epistemologia, ou um conhecimento a respeito do mundo onde vive, como se todos os povos fossem iguais, isso é uma negação. Tira de nós a identidade e impõe ideias equivocadas que vão sendo reproduzidas. Então essa palavra indígena, é uma palavra que afirma, ela diz quem eu sou, diz que eu sou parte de um povo originário. Pertencer a um povo originário significa que eu tenho uma identidade própria, o reconhecimento que é meu, o reconhecimento que faz com que eu seja parte de um povo, e não de um povo tradicional.  Que esse povo, se constitui dentro dessa realidade que a gente vive, de uma forma única, completamente original.

No início dos anos 70, por conta de uma política do Estado Brasileiro, estado este que foi vandalizado pelos militares, mudaram totalmente a política indigenista, obrigando as crianças indígenas a irem para as escolas das cidades, porque assim se conseguiria que esses indígenas se tornassem “gente de verdade”, se tornassem brasileiros. Felizmente os povos indígenas acabaram resistindo, criaram um movimento político que permitiu serem indígenas, ou pudessem ser brasileiros sem deixar de ser indígenas.

A literatura surge como um instrumento difícil, porque exigia um enfrentamento com o mercado. A escrita literária – o livro – sempre foi um objeto quase exclusivamente usado pela elite que vai para a universidade, que se sente como os dominadores do conhecimento. Os indígenas tiveram que mergulhar dentro dessa sociedade que não era a sua, aprender essa linguagem, pensar a partir dessa lógica para poder dominar os instrumentos e depois devolver para a sociedade com um olhar diferenciado. Quando eu penso no domínio de uma arte como a escrita, eu coloco no conjunto de saberes; o nosso canto é literário, a nossa dança também é literatura, um grande sábio indígena é tão literato quanto eu sou. Essa visão rompe muito, quase de forma estrondosa, com essa visão estereotipada que o Brasil tem sobre a nossa gente.

A História do Brasil foi sendo contada a partir dessa visão do conquistador, de quem foi perseguindo, escravizando, detonando as culturas. É a história do apagamento dessas histórias todas, para justificar a narrativa oficial, hegemônica.

A grande diferença que existe entre a sociedade indígena e a sociedade não-indígena tem a ver com a compreensão do tempo. O tempo ocidental é um tempo linear, é o tempo que caminha para a frente: é o passado, é o presente, é o futuro. Costumo lembrar que o tempo ocidental é o tempo do relógio, símbolo da produção, tempo da riqueza. O tempo indígena é o tempo da natureza, e a natureza é cíclica, ela caminha para trás nesse sentido. É um tempo da circularidade. O indígena olha para sua experiência de vida, de sua existência a partir da própria natureza. Ele aprende com a natureza porque se sente parte dela, mesmo sabendo que precisa construir instrumentos para poder sobreviver. A cultura são esses instrumentos. A gente tem a cultura de fazer coisas porque nós humanos somos na natureza, os seres mais incompletos.

Eu fiz a opção pessoal de escrever para criança, pensando que as crianças são mais maleáveis para aprender do que os adultos, a gente pode mexer com a base da formação para arrancar um pouco dos estereótipos. A criança só sente, ela é a própria natureza. Entre os indígenas nunca se faz a pergunta: “O que você vai ser quando crescer?” Porque nós não queremos que a criança seja outra coisa, a não ser o que ela é. E o que ela é? Criança. Não existe possibilidade da gente olhar para frente e educar as crianças a partir de um modelo de futuro, porque futuro é só invenção, é só uma especulação. Mas a gente pode usar a educação olhando para trás, olhando a experiência vivida e é isso que um adulto faz, se volta para a experiência passada por ele e pelo seu povo para educar as crianças, e essa criança vai sendo impulsionada e vai viver cada fase da vida, até ficar velho, virar avô e avó. Se os pais educam o corpo, os avós educam o espírito.

O avô conta histórias, ele traz o passado, o presente. Através das histórias ele atualiza a memória. Porque o passado para o indígena é exatamente a memória. Para os Munduruku só existe dois tempos: o passado e o presente. O futuro só existe quando ele se torna hoje. A felicidade dos indígenas nunca está no amanhã. Está no hoje, está no agora, e todo esforço é para viver o presente, como um presente. O presente tempo é o tempo que nós temos, mas esse tempo também é uma dádiva que nós recebemos do universo. Nós não somos do passado, embora tenhamos no passado a memória que nos permite dar sentido ao nosso hoje, por isso a ideia do passado presente como uma circularidade. E toda essa visão que o povo indígena desenvolveu que nós somos seres do agora e que precisamos valorizar na memória, porque esta memória nos impulsiona para frente, a gente chama de Bem-viver.

 

Daniel Munduruku no Lugar, 18 de agosto de 2021.

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