Visualizar(abrir em uma nova aba)

“ (…) Sigo os passos,
Passo a passo.
e fundo outro caminho.

Sigo os passos.
Passo a passo.
Sigo e passo.
As águas passam,
e as pedras ficam…”
(Conceição Evaristo: No meio do caminho: deslizantes águas)

Não há como escrever a realidade: a realidade escapa, a realidade é incompreensível… quando você vive um fato e fala desse fato, a sua fala já modifica o fato. A literatura é isso tudo: é a realidade, é a modificação do fato, é a ampliação do fato… é a diminuição do fato. Se a palavra oral não dá conta de dizer do que se passou – imagina a palavra oral…, a oralidade tem o corpo: os seus olhos falam. Se você é mais vivo, percebe inclusive que a pessoa tá mentindo.

Então eu falo: eu quero escrever a ficção como se eu estivesse escrevendo a verdade. Como se eu tivesse escrevendo a realidade, mas sei que não dou conta. Tento me aproximar o mais possível. E o que vai me permitir aproximar o mais possível – e alguém dizia também, um menino falou: “como é que a senhora consegue escrever uma cena tão bruta e fica tão poético?”. É o trabalho da linguagem. É esse trabalho, a linguagem. Eu acho que essa cata da palavra…, quando eu não consigo a palavra, eu invento… eu aglutino… é o exercício da linguagem.

Então eu não quero perder essa veia da ficção, entende? … pelo poder da ficção, a ficção ela te segura. Tenho brincado muito também: você nunca viu ninguém chorando diante do dicionário, né? E as palavras do dicionário estão lá. Se você não trouxer essas palavras pro texto, se não cumpliciar essas palavras uma com a outra, o texto não existe… e se, também, não cumpliciar a vida com a ficção, a ficção não existe, pra mim ela é vazia.

E a escrevivência é, justamente, escrever essa vida que pulsa. Ler e escrever pra mim, ao mesmo tempo que era um espaço de fuga, sempre foi também um espaço de volta, um espaço de inserção. Fugir pra poder analisar…, fugir pelo descontentamento mas voltar pela necessidade de retomar aquele lugar pra modificá-lo. E eu gosto muito também… de pensar Lugar – que é o nome da atividade de vocês – acho que hoje falar de “Becos da memória” é falar de Lugar, é falar de uma literatura marcada pela minha subjetividade de mulher negra, de mulher oriunda das classes populares, é falar de um Lugar aonde essa literatura nasce, e falar de “Becos da memória” – que eu tenho sempre dito que são memórias ficcionalizadas, falar de “Becos da memória” é falar de um Lugar.

… e a minha pergunta tem sido essa, acho que é uma boa pergunta aí para a psicanálise me ajudar, porque eu quero escrever um texto ainda, mas do ponto de vista da literatura, e o que eu pergunto é o seguinte: assim como a história oficial nega, oblitera, a saga dos africanos, a história dos africanos e seus descendentes no Brasil, a literatura, não conseguindo ficcionalizar essa personagem negra como personagem fecundante, não estaria a literatura no nível do recalcado? Assim como a história, querendo negar essa africanidade na nacionalidade brasileira? É uma pergunta…

A escrevivência, mesmo que ela traga uma história contada em 1a pessoa, ela extrapola. Aí nesse sentido eu tenho pensado muito, as pessoas têm perguntado: “a gente pode pensar a escrevivência como a escrita de si?”, e eu tenho dito: pode, até certo ponto pode, mas há um momento que a escrita de si, ela se esgota em si mesma. A escrevivência, o que a gente pensa é uma escrita que, até um dado momento, ela pode ser uma escrita de si, ou ela pode se organizar como escrita de si, mas os sentidos dessa escrita extrapolam o sujeito. 

eu tô lidando com a ficção. Isso pra mim é muito, é muito caro, é um momento de criação. Então você vai me contar uma história e eu vou trabalhar em cima daquela história, eu vou inventar mais sobre aquela história, ou eu vou diminuir aquela história: eu tô fazendo literatura.

Fragmentos recortados da fala de Conceição Evaristo no dia 19 de agosto de 2020, na Escola Letra Freudiana.

Cartel Lugar

0
    0
    Sua cesta
    Cesta vaziaRetornar